Imagens

novaeraIntrodução

            Com este artigo, queremos abordar o problema dos símbolos religiosos das imagens nas Sagradas Escrituras. O tema é complexo, vasto, conflituoso, escorregadio. Não pretendemos apontar erros e acertos de quem quer que seja, nosso objetivo é oferecer alguns elementos para a reflexão e promover uma argumentação que ajude aos nossos visitantes discernir o uso de seus símbolos religiosos e ter clareza dos conceitos e do lugar próprio da divindade.

O que abordamos e a forma como abordamos (texto, contexto) segue uma lógica própria cujo conhecimento bíblico, teológico, exegético, lingüístico e cultural é imprescindível à sua compreensão e nos remete a uma catequese católica de matriz romana latino-americana.

Evidentemente não abordaremos todos os textos bíblicos (coisa impossível), mas os de maiores relevância, que volta e meia, nas palestras e cursos, somos questionados a dizer alguma palavra de esclarecimento, de modo particular sobre o culto as imagens.

Este artigo está dividido em duas partes. Vejamos.

Parte I: Por natureza: religiosos e simbólicos. A crença na divindade.

O homem e a mulher são por natureza seres religiosos. Desde os primórdios da humanidade que eles de alguma forma expressam sua religiosidade através de crenças, ritos e símbolos. É a partir da natureza (sol, lua, astros, estrelas, animais exóticos) que eles, estabelecem com a divindade uma relação holística. Inclusive, tais elementos são tidos em diversos momentos históricos, e em diversos povos/culturas, como divinos mesmos. Deus mesmo! Para esses povos e culturas, o mundo, a vida, a divindade é concebida plural. Daí a crença em milhares de deuses, todas de alguma forma integradas com as diversas dimensões da vida humana (casamento, vida social, a segurança, a saúde, a sobrevivência, etc) ao mesmo tempo em que a transcende.

Todos os povos primitivos são politeístas. O povo entender que os deuses, o ser humano, a vida, a natureza, está tudo integrado, de modo que existe uma interação,  uma relação mais profunda. Os rituais e símbolos esboçam e são canais expressivos dessas realidades. Em dado momento, é impossível compreender a vida, a religiosidade e a religião de outro modo.

Em sua história mais primitiva, Israel aparece nesse contexto como povo politeísta (cf. Js 24, 1-5s). Porque os povos do Oriente Antigo eram politeístas. Entretanto, na história tardia de Israel, ele já se define como um povo em aliança, monoteísta.  É propriamente certo que com Israel temos a defesa substancial da religião monoteísta. A crença numa divindade única, que está próxima do ser humano, que escuta seus clamores, que lhe vem em socorro… que revela um plano histórico cuja missão Israel está incumbido de cumprir.

A Bíblia, fala da trajetória histórica de Israel, sua relação com a divindade única; seus conflitos com os povos vizinhos mediante crença no monoteísmo e seus desafios. A existência de Israel está ligada fundamentalmente a crença única do Deus Único (cf. Dt 6,6-9).

Israel e os conflitos ideológicos: adorar e servir a Deus ou aos Ídolos.

Quando Israel se entendeu a si como povo, a história já havia dado passos largos. Nesse momento, Israel, desempenha um papel cujo centro está no Deus da aliança e na experiência do Êxodo. Assim, quando ele ocupa Canaã, se estabelece um conflito ideológico cuja força está simbolizada na luta contra os ídolos dessas nações que volta e meia se apresenta tentador a Israel (cf. Ex 34, 10-17s; Dt 7,1-6s. 17-26; Jz 2, 11-19).

E Isra-el (aquele que luta com Deus) sempre foi tentado a representar de alguma forma a divindade em que crer, ou prestar culto a ídolos identificando-o com o seu Deus do Êxodo. Nos textos bíblicos há vários exemplos em que lideranças, profetas, religiosos, enfrentaram tais situações com revolta e sangue. Citemos, por exemplo, algumas passagens do Pentateuco e dos livros Históricos: Ex 32,1-14 (bezerro de ouro); Nm 25 (o caso de Baal Fegor); 1Rs 12, 25-33 (o ídolo de Betel/Dã); 1Rs 18, 20-40 (a batalha do monte Carmelo).

É durante o período do reinado unido, e logo após, a sua divisão, entre os dois reinos (Judá e Israel) que aparece fortemente a ideologia javista. De um lado, em Jerusalém (reino de Sul-Judá) há o culto oficial e estatal a Javé, cuja representação simbólica não existe de nenhuma espécie; mas, Judá também (II Crônicas 24,18), adotou outras divindades. Na Samaria (reino do Norte-Israel)  há o culto aos ídolos identificados como Javé – o deus do Êxodo. Entretanto, esses ídolos fora tidos como sendo Baal’s, ou seja, outras divindades próprias dos habitantes primitivos, anterior a Israel. É por causa de sua infidelidade a Javé, o deus único, que o povo vai à exílio e séculos mais tarde volta à terra de Canaã.

Os autores dos textos que retratam esse período fazem uma leitura teológica do ponto de vista do movimento javista e monoteísta ligados a ideologia do reino do sul (cf. 1Rs 7, 1-17)  em detrimento  do reino do norte. Para esses autores, o fato do reinado não existir mais como nação, indo para o exílio, foi por infidelidade a Javé. Também os autores do reino norte redigem a sua versão da história, para eles, coincidem as respostas, mesmo tendo ângulos diferentes. Tudo isso está mesclados nos textos bíblicos sendo os mesmos um conjunto só: há os textos de proibição e aceitação, por exemplo das imagens, etc.

O fato é que, a história bíblica de Israel é cheia de autos e baixos, onde todo povo cometeu enganos, se prostituiram, se dividiram, pecaram contra o javismo, adoraram outras divindades, foram exilados e do exílio voltaram e continuaram com os mesmos desafios. Não é esse, por exemplo, o argumento para a queda de Salomão? Confira 1Rs 11,1-13. E outros reis? Confira Os 8,4.

Os profetas são incansáveis nessa luta e em repetir o refrão da soberania de Javé como único Deus e Senhor de Israel, seu povo. Há inúmeros textos proféticos retratando essa realidade, da infidelidade dos dirigentes da nação e do próprio povo. Confira:   Is 2, 8; 10,10; 41, 29; 42, 8; 44,15-17s; Jr 14, 22; 51,52; Ez 8,10s; 14,3; 20,8; 37, 23; Os 11,2s; Zc 13,2. Esses textos nos dizem da fabricação e adoração  aos ídolos, esquecendo a aliança e o Deus da aliança – Javé. Eles falam dessa relação conflituosa e das causas de seus sofrimentos, sendo dominados por outros povos. Nos textos aparecem claramente a abominação pelos ídolos e o amor por Javé o único para Israel, pelo qual o povo deveria se converter.

No período pós exílio e nos tempos dos Macabeus, o povo apesar de ter aprendido essa lição, continua ainda assim, sendo influenciado pelos ídolos e filosofia ideológica dos seus opressores. Nesse contexto, por exemplo, se dá a guerra dos irmãos Macabeus, mártires pela fé. Cf.  1Mc 1, 43-47s; 10, 78-87s; 2 Mc 12, 40. História bastante conhecida.

Em todo os conflitos durante a história de Israel bíblico, os símbolos religiosos (ídolos, imagens, rituais, amuletos) serão alvo e expressão de uma realidade sagrada em que se tenta discernir a divindade em si mesma e o simbólico como sendo expressão da fé e não como sendo a divindade em si. também a luta pela afirmação do javismo, da idéia de uma divindade única, sempre foi uma constante na Bíblia. São incontáveis os textos bíblicos em que o conflito de interesses aparece. Ao ler os textos em que há proibições e permissão para fazer ídolos e imagens,  devemos entender bem o contexto. Não devemos tirá-los de fora de contexto para afirmar essa ou aquela idéia, pois se corre o risco de má interpretação ou perca total da mensagem.

Na Bíblia há jogos de interesses, existe toda uma história cuja revelação da divindade, dos destinos e do sentido da vida humana, se delineia de modo singular.  A história desse povo tem valores que são para a história universal e para a história das religiões ou da religião, um elemento capital que não se pode deixar de lado. Por isso, a necessidade da correta compreensão dos textos, de modo particular da relação com a divindade e os símbolos que a ela se faça menção.

Israel nasceu vocacionado, sua existência estará sempre no palco da história como testemunha apontando ao mundo o outro lado da essencialidade da vida: Deus. Então, que fascínio e que lugar tem os símbolos, de modo particular, na pratica da religião?

Parte II: Símbolos religiosos.. expressão de fé!

idolatriaOs símbolos religiosos são um expressão da religiosidade, é expressão de fé. Eles representam para nós um sinal de uma realidade que ultrapassa nossos sentidos. Ao usá-los não estamos afirmando ser eles, a Divindade, O Ser divino. Eles (os símbolos) não são detentores de poderes, energias benfazejas ou coisa do tipo, não tem valor por si próprio. Eles tem valor na medida em que nos lembram ou nos fazem reporta ao Sagrado, as realidades divinas; ou aquelas pessoas que a viveram integralmente. E nesse caso, sua função está para nos lembrar dessa realidade e de nossa relação para com ela no cotidiano. É de capital e extrema importância entender isso, para fazer a leitura e interpretação correta do símbolo. Caso contrário, se incorre no perigo de lhe atribuir algo que não tenha.

Quando, então, esses objetos se tornam sem eficácia e ocupam o lugar da divindade ou quando é entendido como sendo a própria divindade, se dá então, o fenômeno chamado de adoração/idolatria. Ou seja, damos aos objetos/símbolos aquilo que não lhe é devido. Nesse sentido, se estabelece, pois, um conflito existencial, religioso. E como conseqüência contraímos a discórdia e divisão. Falsificamos o sagrado e estamos longe dele. Daí o porque de uma boa catequese e a pratica do dialogo, do respeito e de uma correta interpretação.

Depois dessa longa reflexão já está mais que claro a importância dos símbolos e a crença na divindade; como também, o respeito por ambas as correntes, a saber, o politeísmo e o monoteísmo. Agora, sim, cabe aqui, apresentar as devidas explicações sobre aqueles textos que causam tanto inquietações entre alguns irmãos. Eis, pois, a segunda parte de nosso artigo.

Antes de comentarmos os textos, vamos relembrar algumas definições dos nossos dicionários.

Ídolo – estátua ou simples objeto cultuado como deus ou deusa. Pessoa famosa a quem se atribua respeito ou afeto excessivos. (idolatria – culto prestado a ídolo, amor ou paixão exagerada.)[Mini-Aurélio – dicionário da língua portuguesa – Ed. Positivo.2010.]

Imagem – representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoas ou objetos. Estampa que represente assunto ou motivo religioso. Representação mental dum objeto, impressão,etc. lembrança, recordação. (Imaginação – faculdade que tem o espírito de imaginar. Faculdade de criar mediante a combinação de idéias. Fantasia, devaneio). [Mini-Aurélio – dicionário da língua portuguesa – Ed. Positivo.2010.]

A palavra ídolo, imagem, escultura, no geral dizem a mesma coisa e tem o mesmo significado. A questão é que o objeto nominado por essas palavras em determinado momento da história, e da cultura do povo, passa a ser objeto de culto, como se fosse Deus mesmo; ou se lhes atribuem propriedades que só é atribuída à divindade. Então nesse caso especifico se dá a idolatria.

Como vimos anteriormente, Israel foi sempre tentado à idolatria. Muitas vezes cedeu. Outras vezes a fidelidade lhe custou muitos sofrimentos. Na Bíblia existem textos que dizem ser ordem do próprio Deus mandando fazer símbolos religiosos e ornamentais e justifica porque não haveria o perigo da idolatria. De outro modo também, se diz que Deus  proibiu fabricar imagens de esculturas porque percebia o desvirtuamento do povo e suas lideranças. É isso que vemos nos textos a seguir, porém, precisamos contextualizar-los para compreender todo o seu potencial.

Os textos proibindo:

– Ex 20, 1-6; Dt 5, 6-10 (as 10 palavras)

– Lv 19,4 (código da santidade)

– Dt 4, 15-20 (primeiro discurso de Moisés)

– Dt 16, 21-17,7 (culto aos astros)

Os textos da permissão:

– Ex 31, 1-11; 35, 30-36,1 (sabedoria a Beseleel e seus filhos)

– Ex 25, 10-22 (os querubins de asas na arca)

– I Reis 6,23-35 e 7,29 ( o tempo de Salomão)

– Nm 21,8-9 (a serpente de bronze)

Os textos apresentados são de uma época tardia. Apesar de se reportar ao período da caminhada pelo deserto, quando o povo estava com Moisés e a Arca constituía o símbolo da presença de Deus no meio do povo, eles se reportam e (os textos) retratam o período em que o povo vive sob a tutela do reinado: Como nação, Israel já tem a religião institucionalizada, sendo a realeza (o rei) seu representante legítimo e guardião (cf. 2Sm 7; 1Rs 8). Nesse contexto, o Deus do Êxodo, da Aliança, não tem seu peso libertador. Tanto os textos do Êxodo, como de Levítico, Números, Deuteronômio e Reis, são uma releitura na perspectiva da ideologia dominante do reinado (de Salomão?). O que se diz no texto sobre proibir a construção de imagens e outros ornamentos, bem como da proibição do culto de adoração inclusive aos astros, e elementos da natureza, fica minimizado diante da iniciativa do Estado que controla a religião e que constrói esses símbolos contrariando o que se diz na tradição das tribos.

Dos textos que afirmam só há um Deus libertador, que tirou o povo da casa da escravidão, e que não há outro, sendo por isso mesmo proibido de fazer qualquer símbolo que o represente é memória conservada pelas tribos. É tradição das tribos e profética. Entretanto, como já vimos, esses textos são desautorizados e enfraquecidos pela tradição Real. Pois, essa tradição (e com ela, os autores do texto) utiliza-se de uma forma para se firmar e afirmar como sendo ordem de Javé, a permissão de construção de ídolos e todo tipo de imagem para ornar o templo (Veja a profecia de Natã para David 2Sm 7).

Interessante notar que esses textos (os da permissão) estão colocados numa posição importante, no conjunto da obra do Pentateuco (a Torá), e reporta-se, a momentos chaves da história do povo, principalmente da caminhada pelo deserto, quando Moisés ainda vivia; e cada versículo introdutório tem como sendo Moisés, ou Javé, dando a ordem de fazer ou proibir tais coisas. Obra dos redatores.

Por isso que é importante compreender o texto no seu contexto. Devemos ter diante dos nossos olhos que os textos não são uma reportagem ao vivo, mas sucessivas releituras de fé, dentro de um contexto marcado pela cultura, por uma ideologia e por uma sensibilidade ao Sagrado. Assim compreenderemos melhor o seu significado e sua mensagem para hoje nas nossas comunidades.

Os textos nos possibilita no seu contexto compreender o significado da adoração, idolatria, saber a importância dos símbolos, compreender a divindade e suas manifestações na vida do povo, na vida de cada individuo. Ao ler os textos de permissão/negação de fabricação/adoração daqueles símbolos religiosos devemos ter em mente que eles viviam momentos de capital importância para os destinos da humanidade. Temos que entender que o ser humano é religioso por natureza, e que os ritos e símbolos fazem parte de sua vivencia de fé, e religiosidade. Precisamos, também, outrossim, compreender que a idéia da divindade estava se firmando, aprimorando, para chegar ao que é hoje.

Em fim, devemos hoje, perscrutar as Escrituras, contemplar os símbolos como sinais de realidades que ultrapassam os sentidos e nos transportam para outra dimensão que vão além da compreensão humana.

Que ao ler os textos das Sagradas Escrituras, tenhamos nós, como modelo Jesus de Nazaré, Face de Deus voltada para nós, revelando-nos o rosto materno e paterno de Deus – o Pai.

Bibliografia pesquisada:

  • Biblia Hebraica Stuttgartensia. Quarta edição. 1990.
  • Biblia de Jerusalém. S. Paulo. Editora Paulus. 2002.
  • Bíblia TEB. S. Paulo. Edições Loyola.1995.
  • Bíblia do Peregrino. S. Paulo. Paulus.1997.
  • Mini Aurélio, Dicionário da Língua Portuguesa. Curitiba. Editora Positivo.2010.
  • Gottwald, Norma k. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. S. Paulo. Paulinas. 1988.
  • Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. S. Leopoldo. Editora. Sinodal/Vozes.2000.
  • Auvray, Paul. Iniciação ao Hebraico bíblico. Petrópolis. Editora Vozes. 1999.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*