Uma leitura “econômica” dos inícios da Monarquia

Uma leitura “econômica” dos inícios da Monarquia

Por: Sebastião Catequista

Introdução

Com esse artigo, a partir do olhar [chave] econômico fazemos uma releitura dos textos bíblicos do período da monarquia nos reinados de Saul, Davi e Salomão. Ao tecer nossas observações temos bem presente a contribuição das pesquisas modernas sobre esse momento específico. Estamos cientes daquilo que os textos bíblicos mostram enquanto “grandeza” do reinado e império como algo que reflete mais a realidade dos seus autores no momento presente desdes do que seu passado “glorioso”. E entendemos que seus autores assim o fazem para alimentar esperanças e utopias daqueles que estão voltando à “terra da promessa” para recomeçar sua nova aventura.

Ao ler os textos bíblicos a partir desse contexto, identificando nas perícopes [notas] analisadas, possíveis informações da história que nos leve a um olhar dos “fatores econômicos”, queremos entender “em tese”, como se deu as relações sociais e políticas no cotidiano das tribos dentro de um “sistema de troca e vassalagem”, naquele período em que o reinado está começando sua aventura.

Claro estar que, esse tema não é uma reflexão “contida nas Escrituras” ao modo de hoje, e muito menos o é, como entendemos. Sabendo disso, não ousamos forçar o texto naquilo que ele não pode dar. E não ousamos levar para o texto os conceitos, ideias, sistemas e praticas de hoje, pois se assim agíssemos, não estaríamos sendo fiel a interpretação do mesmo. Mas, isso não nos impede de ir ao texto e fazemos uma leitura econômica da realidade que o texto bíblico nos apresenta, de modo que iluminados por sua mensagem possamos também nós, fazer a experiência alternativa de sociedade e de economia em nosso tempo. Pois, é disso que se trata o texto: uma experiência alternativa de sociedade que possibilite viver o sonho da liberdade, e da dignidade humana.

Nossa produção enquanto leitura e reflexão é rudimentar. Parte do texto pelo texto e tem como objetivo, despertar no leitor, a leitura socioeconômica como dimensão humana da vida.

1. Contextualizando os textos

Os capítulos que nos reportamos nesse artigo referem-se aos textos [perícopes] que trata dos inícios da monarquia e sua consolidação com Saul, Davi e Salomão. A partir da chave “econômica” fazemos a releitura, inclusive com a contribuição sociológica e teológica.

Levando em consideração as informações bíblicas do texto e o que a pesquisa bíblica nos dá a conhecer nossa história aqui abordada está contextualizada dentro de um modelo social cuja relações de poder e produção são do tempo do sistema de vassalagem e troca dos elementos básicos à vida pessoal e coletiva.

Uma pergunta que norteia nossa releitura pressupondo o lado econômico, é: O que está por trás do início da monarquia?

Entre os muitos fatores apresentados pelas pesquisas modernas sobre esse momento histórico e teológico da história do povo bíblico, destacamos levando em consideração a chave econômica, o novo modelo estrutural de sociedade e das relações, o que nos remete ao final do estilo de vida tribal e o início do reinado israelita na terra de Canaã pelos séculos XIII e XI a.C. Aí encontramos segundo as pesquisas, uma hiato nas formas estruturais das tribos e das cidades-estados.

De um lado temos os grandes impérios do Egito e do outro os “Povos do Mar” onde há grandes fluxos de migrações naquela região. Em Canaã, os diversos habitantes vivem numa cultura ainda nômade e pastoril simultaneamente à uma vida sedentária. Os Filisteus são os “testas de ferro” patrocinados pelo Egito e “assombração” de seus habitantes. Isso se pensarmos enquanto relação de força, de poder militar, que por sua vez, exige das pequenas cidades e populações o pagamento de impostos, escoação da produção agrícola para alimentar o exército. Aqui estamos na passagem da ‘época do bronze’ para a ‘época do ferro’ que os filisteus com sua arte, controla muito bem essa alta tecnologia, como informa 1Sm 13, 19-21.

Nesse contexto, as relações tribal – que tem uma economia agrária – baseada nas relações igualitárias de troca e de consumo estritamente “rural”, estão sendo minadas por uma nova modalidade e estilo de vida. Constantemente cananeus, israelitas, amonitas, edomitas e filisteus se veem envolvidos em batalha cuja disputa não é só “territórios” mas o que eles representam em si: a hegemonia e dominação das relações econômicas e sociais. Apesar dos textos fazerem uma releitura “religiosa” e “teológica” também aí está subentendidos o lado econômico e político das relações e poder. E esse processo vai se “estabilizar” – perdendo os filisteus sua hegemonia – a parti da contribuição de Davi e se expandir com Salomão que em tese dominará a região e expandirá o reino israelita sobre os demais povos vizinhos, e além fronteiras, tido por toda tradição bíblica posterior como uma grande “potência” ao modo das grandes potências do mundo de então.

Nesse contexto, temos a atuação dos profetas Samuel como último juiz e “primeiro” profeta representando as tradições tribal; e o profeta Natã, como “funcionário” ou pelo menos com acesso a corte de Davi e Salomão em um primeiro momento. E essa “atuação” constitui “frear” as ações dos reis tendo como ponto de partida a “ética” das tradições tribal.

Nesse cenário, vale perguntar: Como acontece as relações econômicas nos diferentes períodos distintos de Saul, Davi e Salomão? De que modo ela “consolida” a monarquia em contraste com a tradição tribal?

2. O reino de Saul: entre a tradição tribal e a monarquia

Os textos que contam a história da “eleição” de Saul são muito confusos. Isso acontece por causa das diferentes tradições aí presente dos autores da Obra Deuteronomista. Tais textos indicam tempos e contextos diferentes e supõe objetivos diferentes. No geral, indicam a importância dessa personagem no enredo da história nos inícios da monarquia.

Saul não é ainda um “rei” a modo dos reis e monarcas dos grandes impérios da época. Sua monarquia não configura uma “monarquia” no sentido empregado para esses mesmos impérios. Ele está mais para um um “líder tribal”, com força de “rei”, que reúne em torno de si um significativo exército, e tem o apoio das tribos. Assim ele age, com o “aval” das tradições tribal. Entretanto, sua atuação é significativa para os o que vai acontecer na história de Davi e Salomão que aos poucos vai se distanciando desse modelo.

E quais as “motivações” que podemos ler “por trás do texto” que a Bíblia nos apresenta? Levando em consideração a chave que usamos, em 1Sm 13, 19-21 uma informação é pertinente: Aí encontramos um quadro “social” das relações que já deixa transparecer o fato “econômico”; as tribos israelitas “descem” para “comprar”, “negociar” serviços essenciais à sua sobrevivência nas montanhas. Com isso, temos um “quadro” da vida “rural”, e um da vida na “cidade” que “convivem” simultaneamente. Outro fator é que, as relações se mostram “amistosas” entre dois grupos antagônicos que estão em conflitos: os israelitas [hebreus] e os filisteus.

No texto chama nossa atenção o valor e a menção às moedas1 como pagamento pelos serviços prestados. Essa é posterior ao fatos e nos remete ao tempo de seus autores, mas o simples fato de menção da moeda como objeto que intermedeia a “compra e venda” de serviços dá mais ênfases à leitura que estamos fazendo. Assim, podemos perceber o víeis das relações sociais, políticas e econômicas nesse texto.

Olhando o texto de 1Sm 8, 10-17 encontramos um “quadro pintado” de um “modelo” de monarquia que não representa nem de longe a descrição da “monarquia de Saul”. O texto diz mais das monarquias provavelmente do período de Salomão e dos reis posteriores. De qualquer modo, há no texto elementos que corrobora a chave bíblica que estamos utilizando. Como podemos constatar, os verbos, adjetivos e substantivos que aparecem: carros, cavaleiros, cavalaria, lavrar, ceifar, perfumistas, cozinheiras, padeiras, etc, indica um grau de sociedade e de relações contrárias, por exemplo, do que há na vida tribal onde as relações são fraternas, de solidariedade, de troca. De outro modo, as palavras: dízimo, rebanhos, escravos, servos, serviços, etc, denota uma sociedade cuja relações são refinadas e indica um novo modelo social e de suas relações.

Assim, temos dois quadros bem distintos: uma sociedade tribal que baseia suas relações de modo igualitária e outra que as relações são de vassalagem. Nessa última, os israelitas querem ingressar, e as motivações apresentadas: querem ser como os “outros” povos (8,1-4). E sua argumentação é muito simples: a corrupção de suas lideranças (8,5). No contexto geral e que se pode constatar a partir das pesquisas recentes, esses argumentos escamoteia uma outra postura: o fato de que, está havendo uma mudança na vida e nas relações sociais e econômica daquelas populações. E esse novo estilo de vida é o que quer os israelitas.

Outros textos que cabem analisar são os capítulos 11 e 13. Eles nos apresentam alguns dados significativos. No capítulo 11 temos a história em que Saul vence os amonitas. Nesse texto ele aparece ao modo de um dos juízes do passado como Sansão, Abimeleque, Gedeão. Esse “carisma” é um elemento próprio da tradição tribal, que o povo reconhece em Saul, e que por sorteio ele se torna rei. Há de certo modo uma ingenuidade nesse episódio, em que ele se torna rei de Benjamim.

Saul representa os donos do gado. Os fazendeiros latifundiários.

Para ir à “guerra” e salvar o povo de Jabes de Galaad ele convoca os “homens” [produção de trabalho] dos fazendeiros que tem o gado de grande porte. São esses que Saul vai defender. Ele vai lutar por um modo de produção defendido por esses latifundiários (11,7-8). Essa categoria nos leva a crer que eles é quem desejam um novo modelo de sociedade. Porque aí está presente o lucro, a riqueza, a expansão dos negócios. Coisa que os filisteus e aliados estão sendo “entraves”. Assim como também era entrave o sistema tribal. Esse fato significativamente leva a “criação” da monarquia no meio do povo de Deus.

No capítulo 13 encontra-se um conflito: o que é próprio da tradição e da monarquia. Ele nos dá conta da “crise” entre Saul e Samuel evidenciando por um lado, o “poder” de “mandar” de “abençoar” de “interpretar” a voz/vontade de Javé. Essa prerrogativa é da tradição tribal e não da monarquia. É uma queda de braços entre a tradição tribal (Samuel) e a monarquia como novo que se impõe (Saul) e esse fato, “separa” cada vez mais os dois modelos de vida.

O capítulo 15, é mais incisivo quanto a “ruptura” definitiva entre Saul e Samuel que resulta no anúncio de outro que tomará o seu lugar. As motivações é obvia: Saul não corresponde aos desejos da tradição tribal. O texto sob o enfoque teológico põe em evidencia o fato de Saul não ter exterminado o rei Agag, símbolo da crueldade e desprezo por Israel. A ênfases não recai no fato do “extermínio”, mas, no fato de Saul “não ter obedecido” as ordens de Javé. O que equivale, não ter seguido a tradição. E como “castigo” ele será retirado da monarquia. Aqui tem o “fim” definitivo, a ruptura. E assim, as portas estão abertas para Davi.

Daí para frente se terá uma “saga” tipica de uma “novela” onde Saul persegue Davi, cujo resultado levará Saul e sua “dinastia” à morte.

Por quê Saul [monarquia] não “cumpriu as ordens” de Javé (tradição/profeta) e sim o profeta [tradição]? Os versos 14-15. 19-21, nos dá uma justificativa quando no diálogo entre Saul e Samuel este, diz que “teme” o povo que pegou o gado miúdo e graúdo. Mas em seguida, está claro no decorrer do diálogo sua intenção: negociar. Ou seja, há uma outra postura, própria do novo sistema, da monarquia.

Saul não consegue dá passos no sentido de criar uma “monarquia” propriamente dita aos moldes dos grandes impérios, como por exemplo, o de Salomão, mas foi sem dúvidas um passo importante para o que virá depois nos quadros de transformações daquelas sociedades.

3. O reino de Davi: consolidação da monarquia

Davi aparece na história à sombra de Saul e como bandeira levantada por Samuel. Pelo menos é o que o redator Deuteronomista nos indica em sua obra. A pergunta que está latente é: Qual a contribuição de Davi para a valorização da tradição tribal e consolidação da monarquia? Como aparece numa leitura econômica dos textos, seu papel diante do novo cenário em Canaã? É o que nos debruçamos nessas linhas de reflexão.

Do longo episódio novelesco (cf. 1Sm 16-31) em que os textos tratam das relações entre Saul e Davi, suas crises, conflitos e rupturas, encontramos “notas” nos episódios que como “informações” vão desenhando o quadro da “ascensão de Davi” rumo à monarquia. É o caso por exemplo de 1Sm 22, 1-5 e o capítulo 27 .

Essas “notas” dentro de um “quadro” social mostra as relações “econômicas” enquanto indicador de conflitos, de pobreza, de “desemprego” dentro daquele contexto em que novo “estilo de vida” sob novas perspectivas está “mexendo com a cabeça” do povo das tribos, sobretudo de Judá, de onde vem o jovem Davi.

Citando a categoria do gado miúdo e graúdo para se referir aos grupos de fazendeiros, e com eles, toda uma representação dos clãs, da tribo benjaminita, bem como, a exclusão (anátema, excomunhão, maldição) dos reis vencidos, como símbolo de uma sociedade agrária que está em “decadência”, pelo menos nesses textos que agora analisamos, novos elementos aparecem como fruto daquele tipo de sociedade: os endividados, os que se achavam em dificuldades e os que estavam descontentes (cf. 1Sm 22,2).

É com essa nova categoria social, diferentemente das de Saul [fazendeiros donos do gado] que Davi começa a dar seus passos. Temos aqui uma “opção pelos pobres” de víeis “ideológico”, pois é com essas categorias, com as lideranças do povo e com a elite do exército de Saul que Davi vai buscar o seu destino. E isso nos leva a analisar o capítulo 27.

Davi foge de Saul, teme por sua vida e dos seus. Ao fazer isso “muda de lado” e passa ao “território do inimigo” e nesse caso, se torna um “traidor do povo”, mas, sua astúcia, segundo o redator, é de outra ordem: Davi se “refugia” entre o inimigo que lhe dá a cidade de Ciceleg, base de suas atividades. E ele se empenha em atacar as cidades cananeias inimigas dos israelitas. Com isso ele cria uma situação de “desconfiança” entre os cananeus para com os filisteus e, dá um sinal claro para os israelitas de suas intenções. Contou com “a sorte do seu lado”. Desse modo Davi vai minando “as bases do sistema” filisteu e cananeu aumentando ainda mais o seu prestígio e suas claras intenções de reinar.

Ainda analisando o capítulo 27, 8-9 encontramos outra “nota” da situação social que informa com quem Davi anda, a quem ele “ataca” e o que faz com “os bens adquiridos” da “guerra”. Em sua ação há uma violência incrustada cujas “mãos manchadas de sangue” (Cf. 1Cro 22,6-9; 1Rs 5,17) – no futuro lhe será cobrada – e por agora, está a serviço do reino que quer construir.

Passando do primeiro para o segundo livro de Samuel, o enredo da história continua. Também aí encontramos “notas” que nos fala da sociedade e de sua relação econômica. Se antes havia uma situação de conflito onde os donos do gado lutavam contra uma forma de sistema que beneficiava a hegemonia dos filisteus e penalizavam israelitas, cananeus, moabitas e amonitas, situação que se agrava ainda mais pelo fato dos filisteus dominarem a tecnologia do ferro em detrimento das demais que são de “uma cultura rural”, agora, temos uma nova situação de agravamento: o desemprego, o banditismo, e os descontentes. Há um “caos social” crescente que encontra na ação de Davi uma resposta: uma nova sociedade. Eis, porque aos poucos Davi vai crescendo “seu exército” de “bandidos, endividados, desempregados, desconformados”.

Ao torna-se rei de Judá (2Sm 2,1-7) certamente sob a aprovação dos terríveis filisteus, Davi conseguiu outro feito: dar novas esperança ao povo. Depois, ao torna-se rei de Israel no Norte (2Sm 5,1-5) ele consolida seu poder e a monarquia com a conquista de Jerusalém (2Sm 5,6-16) e derrota de vez os filisteus (2Sm 5,17-25).

Temos nova história. Davi não elimina as tradições das tribos nessa nova configuração de reinado, e integra também as tradições do povo jebuseu. Valoriza a tradição sacerdotal de seu povo e a tradição sacerdotal jebusita dos moradores de Jerusalém. Cria uma “nova ordem” uma “nova tradição”. Assim, Davi quebra resistências da tradição tribal que Saul não conseguiu, e para isso, consegue dá ao seu povo o que esse mais deseja: a “tomada de posse” da “terra prometida”, promessa feita aos antigos ancestrais e, que ele faz acontecer “no hoje do seu povo”. E por isso, tem “cartas brancas” na mesa para uma nova virada. E é a partir dessa base que ele movimentará a “economia” e as relações sociais.

E essas relações sociais tem seu “sustento” nas relações “econômicas” a partir da ideia da construção do templo. Pois, aí geraria empregos, e uma economia forte de consolidação de vez do seu reinado, entretanto, esse plano foi barrado pela profecia na pessoa do profeta Natã que lhe indica, uma contraproposta: lutar contra todos os inimigos da região e consolidar a hegemonia davídica. Ou seja, construir um império e uma monarquia dinástica. É o que está claro no capítulo de 2Sm 7; 8 e 10.

Nesses capítulos (2Sm 7;8;10) temos um “sumário” das conquistas de Davi que vence todos os pequenos reinos de Canaã tanto no Sul como no Norte. Para a leitura que estamos fazendo, podemos perceber que, nas relações sociais e econômicas do seu povo, e com os vencidos, a sustentação está no sistema tributário e num forte controle social por parte da polícia de Davi. Com isso há uma nova configuração bem mais complexa do que aquela anterior em que os filisteus impôs à região.

E por que Davi conseguiu humanamente esse êxito? A resposta à essa pergunta não não está nos textos. Está nas pequisas históricas. O que se pode verificar é que, naquela situação, as grandes potências como do Egito, da região Mesopotâmica, ou mesmo dos grandes impérios do Ocidente e Oriente não estavam historicamente com forças que pudessem intervir naquela região. E isso, favoreceu historicamente, aqueles “pequenos reinos” como Judá e Israel ter seu momento de ascensão2.

Basicamente, com a ascensão de Davi e do seu “império” em Canaã houve uma singular modificação na cultura e nas relações daquele povo. Com a criação do “reino de Israel” unificado há uma forte campanha não só para conquistar, dominar, possuir, manter a hegemonia na região e viver da tributação dos povos conquistados, mas também há uma fortíssima “luta” para implantar o culto a Javé, o Deus da Israel. Essa luta reflete a nova ideologia da coroa [a monarquia] “domesticando” a subversiva ideia de um Deus/Javé libertador. Isso significa uma nova postura que em muito se afasta da tradição e teologia tribal.

O reinado iniciado por Davi dá a Israel uma perspectiva nova, e novas relações tributárias econômicas, social, religiosa e política. Mas há “negligencias”, “furos”, situações em que a monarquia não dá conta. E essas situações nessa nova configuração em sua “burocracia”, não faz caso da “justiça”, o que leva o jovem Absalão (2Rs 13-19) entre as intrigas familiar palaciana tramar e tomar (2Rs 15,1-6; ) de seu pai o reinado pelo mesmo meio que o pai usou: ouvindo os injustiçados “na porta”. O final dessa novela é conhecido.

Essa novela também abre precedentes, como é o caso do capítulo seguinte (2Rs 21) com a revolta de Seba. Essa revolta deve ter seu significado pelo fato das intrigas da casa e tribo de Saul contra Davi e Judá, ainda presente. Dela não se pode dizer muito, mas “em tese” ela demostra que não é “todo povo” (tribos) que está com Davi. Há resistências, ainda que os textos sejam “escassos” quanto ao modo de como ela acontece.

O fato é que Davi há de enfrentar outras “rebeliões” no tocante a sucessão ao trono, e os partidos que aparecem diante dos possíveis candidatos tem seu apoio na tradição tribal. Por trás desses candidatos não só tem uma leitura religiosa e teológica, mas supõe também uma leitura econômica e social de grupos que querem pra si também o poder. Seja como for, o aparecimento do reinado de Davi deixou ainda que modesta, as bases para o que se seguira depois, com Salomão.

4. O reinado de Salomão: um “império” com uma economia forte de relações sociais frágeis.

A ascensão de Salomão ao trono é marcada por uma confusa corrida de outros pretendentes ao trono (cf. 1Rs 1-3). Numa história de eliminação da concorrência e violência, coisa bem “tipica de filmes Hollywoodiano” dos tempos modernos, envolvendo a instituição profética e a religião, bem como o aparato militar3, o jovem Salomão chega de fato ao trono. Há uma “nova proposta” de governo no ar bem mais refinada e arrojada defendida pelos grupos elite da corte pró-Salomão.

Salomão após eliminar um a um dos seus concorrentes familiares, e os principais líderes das tribos que representavam ainda uma tradição tribal contrária a sua escolha, monta uma nova tradição cujo suporte será sua base para as inovações. Assim começa seu plano audacioso de “construir um império”. Começa por pensar e agir em três linhas de frente: os casamentos políticos – onde consolida seu poderio em toda Oriente, colocando seus novos “parceiros familiares” nos seus planos de expansão, enquanto testas de ferro de proteção do seu governo [pois, quem vai contra o parente poderoso, ainda mais quando se pode de alguma forma se beneficiar dele?]; a construção do templo – como grande “obra” que aquecerá a “economia” da região e consequentemente dará “empregos” e manterá o povo ocupado. E aí ele impõe algo que é muito caro e traumatizante ao seu povo – o serviço da ‘corveia’ (cf. 1Rs 5,27-31). E ampliará através da “cultura” e do sofisticado serviço de marketing, a propaganda da “sabedoria” que há no seu reinado, fazendo crescer sua fama, atraindo o “turismo” (cf. 1Rs 5,14), que será por assim dizer, o braço “forte” da terceira linha de ação; a navegação (cf. 1Rs 9,26-28).

Com esse programa Salomão constrói um “novo modelo” de reinado mais complexo, com uma burocracia e aparato policial muito mais “especializado” e uma “política de cota” muito mais arraigada na vida das tribos. É o que lemos na história da organização dos 12 distritos.

Assim, impõe Salomão, uma “escravidão” muito maior até então, do que aquela geração conhecera. O redator ao contar a história do reinado e, sobretudo, do reinado de Salomão, equipara essa história aos dos grande impérios de sua época, ou pelo menos tem “mentalmente” esse modelo para enfatizar com mais força à memória popular, a grandeza de Israel, e de sua pertença àquela região.

Se em Saul temos o início modesto de “um reinado”, em Davi temos o “conquistador e consolidador” do reino, mas é com Salomão, que o reino tem aspecto de “império” e se pode colocar no mesmo nível dos grandes impérios. E isso tem um custo e um resultado: a consolidação do povo como soberano da terra (cf. 1Rs 4,20).

Analisemos alguns textos e vejamos a trajetória econômica do reinado de Salomão e suas fragilidades.

Do capítulo 3 ao capítulo 5,14 do primeiro livro dos Reis (cf. 1Rs 3-5,14) temos notícias da “sabedoria” de Salomão. Aí encontramos sua aliança com o Egito; o culto a Javé em Gabaon; o episódio das mães que ele julga sobre a quem pertence o filho, demostrando sabedoria e discernimento; a organização do seu “gabinete” e demais instâncias de governo; e a organização dos 12 distritos que abastece o palácio. Impressionante são as “cifras econômicas” que são destinadas para manter todo esse sistema. Leia o texto. Tais cifras nos reporta a ideia da “renda per capita” de cada família, de cada clã, bem como, o que seria a “riqueza de todo país” numa conjuntura social como é descrita no texto. Mas, essa informação não a temos, e ficamos a “tatear” em “teses de suposições”. Até porque tais cifras podem indicar mais o momento presente do redator do que da história em si. Além do mais, para se obter algo assim precisaríamos de ver as pesquisas cientificas recentes, que não é o caso aqui nesse momento de nossa reflexão.

Em 1Rs 5, 14-9,28 temos o que a Bíblia de Jerusalém intitula “Salomão, o construtor”. Aí se descreve a construção do palácio real e do templo, que Salomão, justifica afirmando em 1Rs 5,18-19, o motivo teológico do mesmo: promessa de Javé ao seu pai Davi.

Para construção ele contrata os trabalhadores e material de Hiram, rei de Tiro. O pagamento é por troca de material de primeiras necessidades (1Rs 5,22-25). O texto afirma que ele pagou “víveres, trigo, azeite” entre outros. E em 2Cro 2,9 afirma que aos trabalhadores ele pagou “trigo, cevada, vinho, azeite”. Os versos indicam em nosso ver, uma aproximação mais verossímil da realidade histórica. E o texto nos faz pensar que, esses trabalhadores são “mão de obra qualificada e especializada” (2Cro 2,12-13), uma vez que o texto cita logo adiante que o rei convocou “todo Israel” para o trabalho da “corveia” (1Rs 5,27), isto é, para o “trabalho escravo” “servil” da obra. Ou seja, “mão de obra barata”, e com isso, ele mantém a “economia” em pleno funcionamento.

É impressionante a quantidade de madeira, de material em bronze e ouro que Salomão utilizou nas construções (1Rs 7,51). E pelo que podemos pensar, tal material não consistia ainda uma referencia como “moeda” ou “valor monetário” no sentido de “cambio”, mas era “matéria” bruta de troca como qualquer outro material de importância mediante as necessidades. Não era como é hoje.

Em 1Rs 10 o texto descreve a visita da rainha de Sabá, a riqueza do mesmo e a frota de seus carros. O que o textos nos dá conta é que por trás disso há toda uma “industria” uma “sabedoria” posta a serviço do “comércio” e do “turismo”. De fato, o texto é um marketing da personagem que “vende” uma “imagem” a serviço do sistema. Isso implica toda uma “força produtiva”, uma engrenagem complexa e eficiente que envolve todos os setores da vida cotidiana do reino.

E Salomão, foi um gigante que construiu “todo um império”, movimentou “cifras” incalculáveis, modificou as tradições originárias do seu povo, abriu frentes de trabalhos, se impôs no comércio além fronteiras, construiu um nome. Com isso garantiu na memória posterior do seu povo um lugar na tradição.

Mas diante de todo esse “império” e “riqueza” que certamente “mexeu com a cabeça” do povo, não houve quem protestasse, quem pensasse diferente, quem descontente fosse uma contraproposta?

Sim! Mas não encontramos algo tão nítido assim nos textos, exceto do que já fizemos referência aqui. Porém, mesmo sendo textos de caráter e gênero religioso e teológico, nas entrelinhas podemos intuir indícios de resistência à proposta de Salomão. E isso faz com que as relações sociais e políticas minem de alguma forma esse projeto. Ou seja, o gigante pode ser gigante e poderoso e imponente, mas tem seu ponto fraco: a resistência popular.

É o que podemos ver nos capítulos de 1Rs 11 e 12. Logo de cara, o autor dos textos, querendo valorizar o javismo afirma que Salomão falhou com suas obrigações quando faz uma espécie de “sincretismo religioso” entre o javismo e demais cultos religiosos de suas “esposas”. É uma “resistência” interna; também afirma a resistência de Adad, o edomita, que busca “aliança” com o Egito [casamento] e trama nas entrelinhas movimento de resistência. É uma resistência externa causada pelos edomitas, grupo de fora dos círculos históricos das tribos.

Mas, é com o movimento profético liderado por Aías de Silo, que se alia a Jeroboão, chefe da corveia da ‘casa de José’ [nome que indica ‘peso’ se lembrarmos no lendário José do Egito – tribos de Efraim e Manassés] que a resistência terá seu efeito e andamento em curso.

Essa resistência profética, em um primeiro momento não bate de frente com o governo; mas vai às bases das tribos mais fraca e longe do poder, para realizar a “educação popular” por meio da “profecia de Aías de Silo”, e indica o seu candidato: Jeroboão. Esse “conhece” a máquina do sistema por dentro e sabe do sofrimento do povo nos “porões” das corveias. Resultado: está se espalhando e se fortalecendo na memória popular das tribos do Norte a ideia subversiva para dar o golpe final. E esse veio com a morte de Salomão, e subida de seu filho Roboão ao trono. É precisamente nessa hora que “todo edifício imponente e poderoso” caí por terra mediante a fragilidade de suas relações político sociais.

O império do grande e sábio Salomão caiu. Agora toda Canaã tem uma nova realidade política social e por consequência, uma “nova política econômica” que não é a mesma do passado distante, quando reinava os terríveis filisteus, nem de Davi o conquistador, e nem de Salomão o imperialista. É preciso em meio a esse caótico cenário pensar novas medidas de sustentação. Mas isso é outra questão.

O que nos importa aqui é, perceber a partir dos textos analisados, o quanto o víeis econômico, mesmo não sendo mencionado aos modos de hoje, e nem mesmo pensado, porque estamos num momento histórico muito anterior ao aparecimento do que mais tarde será um “sistema monetário”, é importante e está presente de algum modo nos textos bíblicos nesse período específico da história do povo.

Conclusão

Ao fazer a releitura de alguns textos bíblicos do período do reinado, sob perspectiva econômica, enquanto relações de troca, compra e venda, que facilita a vida comunitária, bem como, perceber essa ideia [relações econômicas] nos textos ainda que nas entrelinhas dos versículos, não esteja clara enquanto termos que definem escalas de valores, de status social, ou mesmo de função enquanto força de trabalho e sobrevivência, quisemos alargar nossa percepção da história e dos textos enquanto “elemento axial” que “funda uma leitura” econômica do texto, na visão de quem os ler para em seguida contrapor sua própria leitura da realidade hoje.

De fato, lendo os textos sob a ótica das relações econômicas é possível entrever nas entrelinhas a forma como está organizada a sociedade de então, como também intuir seu período histórico universal, levando-nos como leitor a fazer uma analise das relações sociais e econômica daquele tempo e do nosso tempo, sob perspectivas de fé, uma vez que, o texto “é sagrado” e que ilumina a vida.

Vendo por esse ângulo, eles são para nós hoje, uma fonte perene de leitura e releitura da sociedade atual em que vivemos e onde forjamos e lutamos por aqueles valores que nos diz ser povo – povo de Deus.

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1A moeda só aparece em Israel pelo século VII a.C. A pesar de 1Cr 29,7s afirmar que Davi recebeu o “dáricos” como doação para o Serviço da Casa de Deus [templo]. Isso denota mais a época do redator que escreve por volta do século IV ou III a.C, quando a moeda já se tornou um meio habitual de troca, compra e venda.

2Schokel. Luiz Alonso. Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002. Pág, 565.

3E não é o caso, por exemplo, das últimas eleições em nosso país em que, grupos religiosos, militares e de direita se juntaram numa grande aliança na corrida pelo poder?


Bibliografia consultada

Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.

– Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

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– Pixley. Jorge. A história de Israel a partir dos Pobres. Coleção Deus Conosco. Petrópolis/RJ: Vozes, 1991.

– Mckenzie, S.J. Jonh. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984.

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– Gottwald. Norman K. As tribos de Iahweh – uma Sociologia da Religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Paulus, 2004.

– Liverani. Mario. Para além da Bíblia – história antiga de Israel. São paulo: Edições Loyola e Paulus, 2008.

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