Por: Sebastião Catequista
O relato do chamado dos discípulos nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) não só conta a história de como os primeiros seguidores do Senhor começaram a segui-lo, mas também nos remete a realidade das comunidades para as quais foi escrito. No relato há claramente duas realidades simultâneas como testemunho e apelo para o leitor se decidir por Jesus. Aliás, quando o Senhor vem ao nosso encontro, não somos nós que O escolhemos, mas é Ele que toma a iniciativa, e nos escolhe por primeiro.
Para os leitores desprovido de alguma informação, adiantamos em dizer que, “sinótico” é uma palavra grega que significa “olhar de conjunto”. Olhar sob um mesmo prisma um conjunto diverso. Assim, se aplica o termo para os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas que repetem as mesmas histórias e ensinamentos de Jesus, porém com seu olhar próprio. Separados, cada um tem suas próprias características e detalhes, e visto juntos ao mesmo tempo, é possível ver semelhanças e diferenças de cada um, revelando a riqueza e olhar teológico de cada evangelista. Desse modo, cada evangelista tem detalhes que mais que coincidências, ou mesmo divergências, são detalhes que enriquece o texto e revela a intenção do autor dentro de um contexto eclesiológico especifico. Então, o que podemos dizer, e quais riquezas descobrimos em nossa leitura sinótica dos textos?
O evangelho de Marcos foi escrito primeiro, Mateus e Lucas contém em seus relatos todo ou parte do evangelho de Marcos, então, seguindo essa ordem, podemos ver o seguinte.
Marcos mostra Jesus caminhando junto ao mar da Galileia. Ele dá a ideia de que Jesus está apenas observando na medida que vai passando, sugere o desdobramento da cena a seguir. Jesus ver homens trabalhando (jogar a rede, consertar), são parentes (família) que tem uma pequena empresa (empregados) de pesca. Ele os convida para “pescar” novos ideais – “Sereis pescadores de homens”. Isto supõe que Jesus conheça seus sonhos (já os conhecia antes? De onde? Sabia de seus desejos?). Os episódios anteriores, como o verso 14 [atenção ao verbo pregar – supõe que ele já é conhecido pela pregação na região] nos dá alguma pista! E os pescadores conheciam Jesus? Sim! Pois do contrário, porque deixariam o certo (sua família, trabalho, sua “lei”…) pelo duvidoso (um Rabi novo, idealista)?
Aqui poderíamos pensar no contexto eclesiológico dos leitores do evangelista, que para aderir a fé cristã, tem como pressuposto de sua iniciação conhecer Jesus pelo testemunho da pregação missionária e responder ao convite do mesmo mediante a fé da Comunidade.
Também a afirmação/convite de Jesus aos pescadores é desconcertante: “farei pescadores de homens”, ou seja, ele conhece o ‘ofício de pescador’ tão bem que tem algo a oferecer para aqueles homens, pressupondo suas necessidades e ideais de vida. O texto dá ideia de continuidade da missão de Jesus. Ele os chama para a missão que já começou. Para isso, a pessoa chamada (discípulos) aprenderá em sua escola de vida a ser um novo pescador do Reino. Aqui, não estaria Marcos formando os novos catecúmenos para a missão? O texto é muito rico e profundo do ponto de vista vocacional.
O verbo “caminhar” em sua conjugação “caminhando” e “caminhando mais um pouco’ (dando ideia de indo mais adiante) dá mobilidade a cena, continuidade, como se tivesse dizendo “os que foram chamados primeiro… e depois outros” estão na mesma situação vocacional: seguir o mestre em vista da missão (“sereis pescadores de homens”). Com isso Marcos parece dá ênfases que todos foram chamados cada um ao seu tempo. No texto grego chama atenção o verbo “Paragon” que dá ideia de “ir além, passar adiante, sair” (Dicionário, pág. 351; Léxico, pág. 166). Podemos pensar que o seguimento enquanto “saída” nos remete a deixar uma situação de exclusão para uma nova realidade cujo atores são protagonistas de sua própria história. Pois, se levarmos em consideração que os discípulos são uma “amostra” dos marginalizados pela sociedade de então, pelo simples fato de serem “galileus”, “pobres”, pecadores” de profissão “impura” (profissão não muito bem quista para os da capital e líderes religiosos) e mais ainda nortistas da Galileia… temos então um conteúdo muito rico diante por exemplo, dos novos convertidos que se propõe seguir o Senhor, na comunidade marcana do Ressuscitado.
Desse modo, o relato da vocação dos discípulos é também o relato da vocação de todos aqueles que “as margens do mar” de uma província pobre e excluída deixaram sua família, seu trabalho e arriscaram ouvir e seguir o Nazareno, Jesus. Marcos por entre linhas atualiza na sua comunidade o chamado de Jesus, contando e preservando assim a memória do relato da vocação dos discípulos, ao mesmo tempo que o torna sempre atual. E Mateus?
Mateus em seu enredo se serve de Marcos e tem detalhes significativo. Em primeiro lugar nos chama atenção que, diferentemente de Marcos, ele acrescenta a Simão o nome Pedro, dando a entender qual o papel vocacional do mesmo: ser a rocha que confirma a fé da comunidade em Jesus, a rocha fundante e fundamental. Mas, como o evangelho foi escrito tardiamente, é bem provável que Pedro já tivera sido nome comum de Simão, de modo que aqui não tenha muito relevância, porém, partindo do pressuposto teológico de que Pedro é o que confirma a fé dos irmãos, podemos compreender que na releitura do evangelista esse detalhe tenha sim significado diante de seus leitores que por exemplo, não tenha sido relevante para os outros sinóticos, ainda mais um relato de cunho vocacional. No texto grego também encontramos um elemento importante quanto ao verbo usado para designar caminho, seguimento. É o verbo “Peripaton” que dá a ideia de seguir, atravessar, caminhar, rodear (Dicionário, pág 369-370; Léxico, pág 167). Desse modo podemos intuir a partir da teologia do evangelista que, seguir Jesus é passar, atravessar de uma situação social e marginal (estão às margens do mar) para uma outra realidade cujo chamado o Senhor o faz. A comunidade de Mateus é uma comunidade cujo trauma da exclusão social, política e religiosa está entranhada em sua vida. Sobretudo a religiosa, com a expulsão dos cristãos de origem judaica do templo e da sinagoga. Ao preservar o relato da vocação dos discípulos em sua comunidade o autor está oferecendo a mesma o testemunho permanente de seguimento ao Senhor. Deixar tudo para trás e se aventurar pelo novo caminho, é seguir o Novo Moisés, o que é mais que Elias e João Batista, o que relativiza as Instituições caduca e oferece uma nova possibilidade de identidade e relacionamento com Deus e o mundo. É o que podemos intuir nas entrelinhas da teologia mateana aplicada aqui no relato da vocação.
Mateus não só copiou Marcos, mas lhe deu novo significado a partir do contexto de seus ouvintes/leitores fazendo com que a vocação seja um testemunho permanente de resposta e seguimento ao Senhor. Não é isso, por exemplo, o que nos sugere a personagem de Pedro? E Lucas?
A perícope de Lucas é mais complexa ao mesmo tempo que é rica de detalhes. Ele diferente de Marcos e Mateus detalha as atividades missionária de Jesus antes de chamar os discípulos. Jesus pregar, cria fama no meio do povo e só depois que tem fama, chama-os. Dessa forma, podemos concluir que os discípulos já conheciam Jesus em sua fama e atividade. Confira esses versículos do capítulo quarto (cf. 4, 14.16.31.38.40.42.44).
Veja também na sequência de versículos onde Pedro aparece; e o “descuido” do evangelista ao passar da Judeia para a Galileia e da Galileia para a Judeia, dando a entender um “cochilo” na sequência do enredo proposto pelo autor. Foi erro de grafia? De informação? Palavra fora do lugar? Ou foi intencional? Sabemos como era muito difícil o trabalho do copista e o material usado naquela época, de modo que todos eram passivos de erros (até nós mesmos em plena modernidade com computadores, tabletes, o quanto não erramos???) Mas, parece que de modo geral não há um erro aqui (que pode nos afirmar nesse sentido são os especialistas que estudam essas coisas. Mas isso não vem ao caso e não vamos enveredar por esse caminho, nosso foco é outro), prefiro pensar que no conjunto total da obra e sua mensagem, principalmente o conjunto do texto em questão.
O capitulo 5 em seus primeiros versículos nos dá uma ideia de imprecisão quanto ao tempo do chamado. Fala de “certo dia” (“e aconteceu”; “certa vez”…) podendo ser um dia em um tempo qualquer do ano. E isso dá uma ideia abstrata do “Quando”, mas isso teria algum valor em si para o chamado? Ou é apenas uma frase de construção da história, sem muita importância? Especulações à parte, Lucas mostra o que Jesus está fazendo: pregando a Palavra de Deus. Ou seja, ele é um pregador itinerante (pelo que veremos no desdobramento da cena) e já tem fama no meio do povo. Ah! O povo! Aí aparece a multidão. Detalhe que falta a os outros sinóticos. Mas ela é apenas mera espectadora, passiva, compõe a cena meramente ilustrativa em vista do chamado dos discípulos. E que interessante, Jesus já conhecia Simão, que no verso oito é acrescentado o nome Pedro. Se olharmos os capítulos anteriores veremos que Jesus já havia se encontrado com Pedro e estado em sua casa (curou a sogra do mesmo anteriormente), dando a entender que Pedro era alguém conhecido e de certa presença na cidade – supomos.
Dando continuidade à cena, temos agora o relato propriamente dito da vocação/chamado que se dá no contexto da pesca milagrosa. O momento é solene. Confira a atitude dos personagens (espanto, cair de joelhos, reconhecimento de ser pecador…); Pedro nem parece o Pedro das cenas anteriores onde Jesus esteve em sua casa; e parece não conhecer o Jesus pregador taumaturgo; é como estivesse diante de uma outra pessoa. O que será que Lucas está querendo enfatizar? Uma personagem, duas atitudes diversas: um pescador simples e um pescador “estupefato” perante o inaudito. Dois Pedro ou duas realidades distintas de um “antes” e um “depois”? Eis a solenidade! Lucas parece está dizendo aos seus leitores: em nossa incredulidade mesmo estando perto e sabendo quem é Jesus, numa hora o veremos como de verdade É. Entretanto, o chamado significativamente é o mesmo dos outros sinóticos e a promessa é a mesma “farei pescadores de homens”.
No texto grego o verbo usado no versículo onze “akolouthéo” (ekolouthésan) que significa “seguir, seguimento, ir junto, acompanhar, ir atrás, continuar seguindo” (Dicionário, pág. 30; Léxico pág. 181/182), nos dá a ideia de que eles deixaram tudo e foram juntos com Jesus, o acompanharam nessa nova proposta de vida.
E tem mais! No seu enredo Lucas é mais fino na escrita e na teologia. Parece mostrar aos seus leitores que mesmo antes da ressurreição Jesus é o Senhor e fala como tal. É o arauto, o mensageiro aprovado pelo Espírito e com poder. E o Espirito é quem conduz a Palavra no meio do povo. Isso é próprio da teologia lucana. E para quem Lucas escreve? Seu leitor é do mundo gentílico grego romano que não tem a concepção da vida e do trabalho como tem os judeus (questão da pureza/impureza, a lei levítica/deuteronômica, o descanso, etc.), pois é outra cultura. Lucas também não chama ‘mar da Galileia’, mas, ‘lago de Genesaré’ dando uma ideia mais exata da localidade. E mais, para o evangelista que não conheceu Jesus terreno, o Jesus desta perícope parece estar revestido de “autoridade/divindade”, mas se levarmos em consideração que o autor escreve o evangelho depois do fato da ressurreição, é compreensível que ele mostre Jesus como “Senhor”.
Enfim, qual a mensagem desse texto segundo a tradição sinótica?
Em linhas gerais o tema é o chamado vocacional dos primeiros quatro discípulos. Daí segue os detalhes que formam a moldura do texto: o lugar do chamado (mar/lago da Galileia/Genesaré; região do norte, pobre, excluída e distante da capital); a motivação do chamado (pescar homens, o reino); e o seguimento (enquanto caminho de convivência). Começa uma nova história onde o Reino vai acontecendo na vida do povo, mas sobretudo na vida de Jesus e dos discípulos. Eles são sementes de um novo porvir; de uma nova Era (eon) que tem como resultado a fundação do novo povo guiado pelo Espírito de Deus.
Em linguagem vocacional poderíamos nos perguntar sobre a nossa própria vocação: Quando se deu o chamado? Onde? Como aconteceu? Em que situação especifica? E desde o tempo do chamado até o momento presente como temos vivido o chamado? Quais fatos e pessoas nos foram luzes nesse caminho vocacional? O que mudou em nós de lá para cá?
Bibliografia consultada:
– Dicionário do Grego do Novo Testamento. Carlos Rusconi – São Paulo: Paulus, 2003
– Léxico Grego-Português do Novo Testamento. Johannes P. Louw, Eugene A. Nida. Barueri, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013
– Novo Testamento Interlinear Grego-Português, Barueri, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004
– Sinopse dos Quatro Evangelhos. Frederico Dattler – São Paulo, Paulus, 1986
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